postado em 22/09/2020 06:00 / atualizado em 22/09/2020 08:31
(Crédito: Aamir Qureshi / AFP)
Em estudo que buscou identificar as características de disseminação do novo coronavírus no território brasileiro, pesquisadores constataram que a maioria dos locais com menores taxas de infecção por esse microrganismo também eram regiões com mais casos de dengue. Essa relação levanta a possibilidade de que os anticorpos gerados durante a infecção por dengue produzam algum tipo de proteção contra Sars-CoV-2, a causa do covid-19. Para a equipe, se a suspeita for confirmada, as possibilidades de combate ao covid-19 podem ser ampliadas. O trabalho, ainda revisado por pares, foi publicado ontem no site de divulgação de estudos científicos MedrXiv.
A observação aconteceu por acaso, em uma análise final dos dados computados. “Às 3 da manhã, olhei os mapas de outras doenças, que são fornecidos pelo Ministério da Saúde, e vi que a lista dos estados que tiveram epidemia de dengue em 2019 e também em 2020 tinha uma relação inversa com o novo coronavírus” , conta ao Correio Miguel Nicolelis, neurocientista brasileiro, professor da Duke University, em Nova York, e principal autor do estudo.
Os pesquisadores observaram posteriormente que os estados nos quais uma grande fração da população contraiu dengue entre janeiro de 2019 e julho de 2020 relataram casos mais baixos e mortes de covid-19 e levaram mais tempo para atingir a transmissão exponencial na comunidade. “Estados que tiveram alta ocorrência de dengue registraram menos casos, menos mortes e demoraram mais para acumular casos do covid-19”, resume o cientista.
A descoberta levanta a possibilidade de uma reatividade imunológica cruzada entre o vírus da dengue e o vírus covid-19. Se isso for comprovado, os pesquisadores acreditam que novas possibilidades de combate à nova doença podem surgir. “Podemos recorrer ao uso da vacina contra a dengue como prevenção do covid-19, enquanto não tivermos um imunizante específico. Temos até outras pesquisas em andamento que utilizam a vacina BCG (tuberculose) como opção preventiva para o novo coronavírus. Mas é claro que isso precisa ser melhor analisado. Seria muito positivo, pois teríamos uma fórmula pronta para ser usada ”, diz Nicolelis.
O neurocientista destaca ainda que os resultados obtidos complementam trabalhos realizados em outros países. “Nossos dados coincidem com pesquisas de cientistas israelenses. Eles haviam guardado amostras de sangue de pacientes com dengue antes da pandemia e, ao testar esse material com o vírus covid-19, observaram uma reação de anticorpos. ”
Cuidado
Marli Sartori, infectologista do Hospital Santa Lúcia, em Brasília, acredita que o estudo brasileiro apresenta dados interessantes, mas por se tratar de uma pesquisa observacional precisa ser vista com cautela. “Foi uma descoberta feita ao acaso, e é uma pesquisa que também precisa ser revista”, justifica. “Outro ponto importante a se destacar é que já tivemos estudos que mostraram semelhanças no efeito protetor dos anticorpos contra outros vírus, mas isso ainda não foi confirmado. Mas se essa relação com a dengue for comprovada, seria algo muito positivo, pois nos daria essa possibilidade de usar a vacina contra a dengue como estratégia preventiva. ”
O médico acredita ainda que estudos que abordem as análises bioquímicas dos dois patógenos podem ajudar a desvendar essas suspeitas. “É muito cedo para dizer que há evidências, não temos dados de análises feitas em nível de laboratório. Acredito que vale a pena usar esses dados interessantes como base para possíveis estudos mais detalhados que analisem os próprios anticorpos. Com isso, teremos mais segurança ”, afirma.
Segundo Nicolelis, as pesquisas vão continuar. “Agora vamos trabalhar com informações de países que também parecem apresentar dados semelhantes. Esta será a segunda parte do estudo. Vamos olhar para o Vietnã, que registrou números menores para covid-19 e também sofre de muitos casos de dengue ”, diz ele.
Divulgação no Brasil é mapeada
A primeira descoberta importante feita pela equipe brasileira foi a de que um estado foi o protagonista na disseminação do novo coronavírus pelo país. “Primeiramente, vimos que São Paulo e outras 16 capitais foram os principais disseminadores da covid-19. Todos tiveram um papel importante, mas São Paulo com certeza se destacou. Chamamos de super propagador, responsável por mais de 80% dos casos no Brasil ”, diz o neurocientista Miguel Nicolelis.
A equipe também descobriu que a disseminação do Sars-CoV-2 ocorreu principalmente por meio de rodovias federais. “Vimos que 26 deles, todos entre os mais usados, foram responsáveis por 30% dos casos da doença”, diz o líder do estudo. Nicolelis explica ainda que, nas análises, foi percebido um “efeito bumerangue”, que ocorreu quando moradores de lugares mais distantes continuaram a buscar tratamento nas capitais.
“Primeiro, os casos chegavam ao campo, depois os pacientes infectados dessas cidades menores voltavam para a capital, em busca de leitos de UTI (unidades de terapia intensiva) que não existem nessas pequenas cidades ou estão disponíveis em pequenas quantidades. Nisso, você tem o vírus viajando de maneiras diferentes, ao longo de estradas e rios, como na Amazônia ”, detalha. (VS)
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